Graca Barata
Em nossa caminhada cristã, temos a graça como pilar fundamental para a explicação da salvação, afinal, se não por graça, como seríamos salvos?
Até esse ponto, superficialmente, é difícil que haja discordância no que diz respeito a doutrina do cristianismo, e muito provavelmente você concorda com o que eu disse anteriormente.
Mas ao falarmos da graça, ao contrário que alguns pensam, devemos ter cuidado com o significado e aplicação no cotidiano de vida cristã, pois podemos não compreender a graça mesmo sabendo que só há salvação por meio dela, e isso influencia e muito a exposição do evangelho.
"Vocês são salvos pela graça, por meio da fé. Isso não vem de vocês; é uma dádiva de Deus." - Efésios 2.8 (NVT)
Resgatando o conceito, a palavra grega utilizada no texto de Efésios (bem como em muitos outros versículos que tratam da graça salvífica, isto é, a graça que salva) é charis, que pode significar "alegria" ou "prazer", como por exemplo no trecho de Lucas 1.30 em que o anjo diz a Maria para não ter medo, pois "achaste graça diante de Deus". Mas o outro significado dessa palavra grega (inclusive, é o que o texto de Efésios nos traz) é de "favor", "boa vontade".
Quando vamos de encontro ao significado dessa passagem, percebemos então que, ao falarmos de um "favor" dado por parte de Deus, chegamos a conclusão de que não há mérito de nossa parte em recebê-lo, nós simplesmente recebemos.
Deus, ao fazer-se homem, esvaziou-se de si e se humilhou (Filipenses 2.7), entregando-se numa cruz para perdão dos pecados daqueles que creem (João 3.16). Nessa "fórmula", a iniciativa, o plano e a ação são de Deus e unicamente dele, e eu e você somos inseridos na medida em que pura e simplesmente a recebemos.
Tal compreensão é de suma importância para que não caiamos no erro do evangelho das obras, em que o papel da graça é oferecer uma oportunidade, e o homem busca merecê-la por meio de suas obras e conduta, tornando-a impossível, pois sabemos que "todos pecaram e carecem da glória de Deus" (Romanos 3.23) e portanto, só podemos ser salvos na medida em que Deus realiza a obra de salvação.
Ao analisarmos o texto de Efésios, Paulo diz que recebemos essa salvação pela graça por meio da fé, e que nem uma coisa nem outra vêm de nós. Isso mesmo, não dá nem pra defender que há o mérito do homem em crer, na medida que nem sua fé vêm de si próprio. Até minha capacidade para crer trata-se de uma dádiva divina.
Franklin Ferreira, em seu livro "Pilares da fé", escreveu:
"A fé é estender mãos vazias em direção ao Cristo crucificado. ... O que nos compete é estender as mãos para ele, em fé, e implorar que ele venha a nós ... não há mérito nenhum em um mendigo ou um sem-teto estender as mãos para receber um prato de comida, uma coberta ou um casaco - o mérito está em quem oferece o prato de comida, a oferta ou o casaco. Da mesma forma, somos instados a estender as mãos para Jesus Cristo, e não há nenhum mérito em fazermos isso. O mérito está em Deus, que nos concede o Cristo crucificado e sua perfeita obediência."
Dessa forma, conseguimos então afirmar (com um embasamento mais aprofundado) a frase que iniciou o post. E a partir daqui, ficará mais fácil de identificar aonde está a tal da graça barata dentro do cristianismo.
Quando pregamos uma "graça gratuitamente gratuita", em que Deus "fez tudo" e, portanto, não temos de fazer nada, caímos no grande perigo de baratear a graça, afinal, mesmo sendo graça, tem em si um alto custo, e Jesus nunca disse o contrário.
"A graça barata é a graça que nós dispensamos a nós próprios. A graça barata é a pregação do perdão sem arrependimento, é o batismo sem a disciplina de uma congregação, é a Ceia do Senhor sem confissão dos pecados, é a absolvição sem confissão pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a graça sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado." - BONHOEFFER (1937), no livro "Discipulado"
A verdade é que, muito comumente, o evangelho que é pregado traz consigo uma graça sem custo, que não demanda mudança, que não exige o arrependimento, que não desperta no crente a convicção de seu pecado e reconhecimento de sua natureza depravada, é uma graça que permite ao "convertido" escrever para si o seu próprio evangelho.
A graça barata é a que diz que temos tudo, logo não precisamos fazer nada, é a graça que minimiza a gravidade da natureza pecaminosa e traz a santíssima natureza de Deus ao meu próprio patamar. É a graça que despreza a reverência do Senhor Todo Poderoso, distorcendo a figura do Pai que ama e disciplina seu filho pelo Pai que, sem zelo, deliberadamente dá tudo o que seu filho quer.
A graça barata despreza a realidade do discipulado, do qual Jesus deixa claro as consequências e os frutos. Ela deixa de lado o sofrimento com Cristo e a constante batalha contra um sistema pecaminoso.
A graça barata permite ao indivíduo que seja "cristão" sem estar presente na comunhão de outros irmãos, bastando apenas cumprir com alguns protocolos, como frequentar os cultos de Ceia. O famoso jargão "não preciso ir a igreja, o importante é ter fé em Deus", torna-se o refúgio de uma consciência que busca apenas aliviar a culpa de uma vida completamente afastada de Deus.
A graça barata troca o que seria o "favor imerecido de Deus" para o "não é mais que sua obrigação".
Como posso baratear a graça que teve para o próprio Deus um alto custo?
"Essa graça é sobretudo preciosa por tê-la sido para Deus, por ter custado a Deus a vida de seu Filho – “fostes comprados por preço” – e porque não pode ser barato para nós aquilo que para Deus custou caro. A graça é graça sobretudo por Deus não ter achado que seu Filho fosse preço demasiado caro a pagar pela nossa vida, antes o deu por nós. A graça preciosa é a encarnação de Deus." -BONHOEFFER (1937), no livro "Discipulado"
A verdadeira graça de Deus é tão preciosa como um tesouro oculto no campo, que faz com que um homem venda tudo o que tem, com alegria (Mateus 13.44); a pérola preciosa, a qual o comerciante se desfaz de todos os seus bens para adquiri-la (Mateus 13:45-46); a obediência ao governo de Cristo, do qual por amor, o homem arranca o olho que o escandaliza (Mateus 5.29).
A graça é graça tão preciosa, porque faz com que, ao chamado de Cristo, o discípulo largue suas redes e o siga.
Não existe graça sem discipulado, não existe evangelho sem relacionamento e comunhão diária com Cristo e seu sofrimento. Pois o verdadeiro discípulo atende o chamado de seu mestre, e o segue fiel e obediente, compartilhando de seu caráter, de sua glória, mas também de seu sofrimento.
Graça só é graça na medida em que o eu, quando alcançado por ela, deixa de ser o eu, e vive buscando incansavelmente por Cristo. Já não há mais nada tão importante, nada tão urgente, nada tão essencial, nada como essa graça.
Que o Senhor Deus me guarde em minha fé, e que eu jamais me esqueça de sua graça preciosa, que me concedeu sem que eu merecesse e me livrou do meu castigo merecido. Que me tirou da condição de escravo do pecado e da condenação para uma vida abundante e esperançosa de que estarei com Ele para toda a eternidade. Que me dá a paz e segurança de que minha alegria não se fundamenta no que o mundo diz sobre felicidade, mas no que Jesus fez na cruz do calvário. Que faz com que meu sofrimento não sirva de desânimo, mas evidência de uma caminhada árdua de discipulado.
Pai, livra-me desta graça barata, perdoa meus pecados e me ajude a perseverar até que o Senhor venha, anunciando a preciosa graça de Jesus Cristo, que se entregou numa cruz para resgatar aqueles à quem o Senhor ama. Obrigado por sua graça, amém.
Photo by Sara Kurfeß on Unsplash